Aurora Borealis

Wednesday, June 27, 2007

São Paulo, 27 de junho de 2007

BRUNO TOLENTINO 12/11/1940 - 27/06/2007


O poeta Bruno Tolentino, vencedor de dois prêmios Jabuti e eleito intelectual do ano de 2003 pela Academia Brasileira de Letras (Prêmio José Ermírio de Moraes), faleceu hoje aos 66 anos.

A causa da morte foi falência múltipla de órgãos, segundo o atestado de óbito emitido pelo hospital Emílio Ribas, onde estava internado há um mês.

Ele tinha 63 anos quando ganhou o seu segundo Jabuti, pelo livro O mundo como Idéia. O primeiro Jabuti tinha sido em 1995, aos 54 anos, pelo livro As horas de Katharina. Apesar de ser conhecido por sua poesia, Tolentino também foi jornalista, professor e polemista.

Sua obra é uma meditação sobre como o ser humano tende a abolir a realidade criando um sistema de conceitos através do qual pretende resolver o drama da existência. Com a exploração de todas as formas poéticas conhecidas, construiu uma poesia que aponta para o metafísico, somando à beleza formal uma profundidade filosófica poucas vezes vista na literatura brasileira.

Seus livros mais populares são As horas de Katharina e A Balada do Cárcere, pelo qual ganhou, em 1996, o prêmio Cruz e Souza de melhor livro de poesia, e, em 1997, o Abgar Renault. O primeiro conta a biografia de uma freira que, através de uma série de experiências religiosas, se encaminha para uma vida de santidade; já o segundo livro relata a trajetória de um presidiário inglês, que vai da culpa por um crime passional à aceitação de sua finitude, levado pelos encantos da linguagem.

A Balada do Cárcere (1996) foi inspirado na experiência do próprio Tolentino, preso na Inglaterra por tráfico de drogas em 1987, e encarcerado na prisão de Dartmoor, conhecida entre os ingleses como “Ilha do Diabo”. Ele foi libertado 22 meses depois e obteve perdão do governo inglês por ter sido injustamente acusado.

Sua carreira no exterior começou após deixar o Brasil em 1964 para encontrar-se com Giuseppe Ungaretti em Roma. A partir daí, foi tradutor e intérprete junto à Comunidade Econômica Européia e professor nas universidades de Bristol e Essex. Em 1973, assumiu a direção da Oxford Poetry Now, sucedendo o poeta W. H. Auden. Na Europa, publicou os livros Le Vrai Le Vain (Paris, 1971) e Au Colloque des Monstres (Paris, 1973), em francês, e About the Hunt (Oxford, 1978), na língua inglesa.
Tolentino retornou ao País em 1993. Suas críticas à atual situação cultural do país foram sintetizadas numa famosa entrevista, publicada nas Páginas Amarelas da revista Veja, em 20 de março de 1996: “O Brasil que eu conheci, e do qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o Brasil. Quero saber quem seqüestrou a inteligência brasileira. Quero meu país de volta”.

Durante esse período, continuou a publicar livros exemplares como Os Deuses de Hoje (1995), Os Sapos de Ontem (1995) e a reedição de seu primeiro livro, Anulação e Outros Reparos (1998), lançado pela primeira vez em 1963 e pelo qual ganhou, três anos antes, o prêmio Revelação de Autor.

Nos seus últimos cinco anos de vida, publicou os dois pilares de sua obra poética, O mundo como Idéia (2002) e A imitação do amanhecer (2006). O primeiro foi “o livro-arena”, desenvolvido durante quarenta anos, em que Tolentino foi de encontro às suas dúvidas mais íntimas e irredutíveis, e com elas lutou por uma filosofia da forma que lhe permitiu exercer sem má consciência o grave e difícil ofício da poesia; já A imitação do amanhecer é o livro que dramatiza, numa história contada em 538 sonetos alexandrinos, todas as obsessões que permearam sua vida como poeta. Por este livro foi indicado, em primeiro lugar entre os finalistas, ao 49° Prêmio Jabuti, de 2007.

Nascido em 12 de novembro de 1940, Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino Sobrinho vinha de uma família tradicional do Rio de Janeiro. Sobrinho de Lúcia Miguel Pereira, biógrafa de Machado de Assis, ele conviveu desde de criança com os maiores nomes da intelectualidade brasileira das décadas de 1940 e 1950. Seus primeiros mestres foram Cecília Meirelles e Manuel Bandeira, este último fundamental para a sua formação como poeta. Também teve contato próximo com José Guilherme Merquior, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
Aclamado por grandes poetas como Saint-John Perse (Prêmio Nobel de Literatura, 1960) e Yves Bonnefoy, Tolentino obteve o respeito da crítica internacional com os elogios de Jean Starobinki e Charles Tomlinson. “Um poeta de raro talento”, escreveu Starobinski em um artigo para a Nouvelle Revue Française em 1979, “uma das mentes mais bem equipadas para abordar o problema da poesia em nosso tempo” – e, como complementaria Bonnefoy, “sem dúvida um ‘daqueles poucos’ que fazem a cultura de uma época” (Ephémére no.5).
Saint-John Perse diria que seus poemas “exalam uma dor tão justa que só sua perfeição formal a torna suportável”; e, como escreveu Charles Tomlinson no Times Literary Supplement em 1990, ler seus livros é “um exemplo de equilíbrio e claridade numa época marcada pelo extremismo moral”.

Desde sua volta ao Brasil, a maioria da inteligência nacional reconheceu que sua obra era de rara importância e encerrava “uma noite que durava trinta anos”, segundo as palavras de Arnaldo Jabor. Antonio Houaiss também declarou: “Sua majestosa química verbal (...), a tragédia lírica a que consegue juntar toques épicos e cômicos e patéticos (...), colocam-no como o intérprete deste tempo que não busca o compadrio dos espertos e artimanhosos”. E Miguel Reale não hesitou em afirmar que Tolentino é “um poeta clássico que ama e cultiva a forma como valor imagético concreto, nela unitariamente fundindo o sensível e o intelectivo, a palavra e o seu conteúdo significante”.

Martim Vasques da Cunha

Guilherme Malzoni Rabello

Detentores dos direitos autorais da obra de Bruno Tolentino

Thursday, June 14, 2007

LIFE ABHORS TRANSPARENCE

24 DE MAIO DE 1980

Enfrentei, na falta de feras, jaulas de aço,
escavei meu apelido, e o tempo que me faltava para cumprir,
em colunas e paredes nuas de concreto,
vivi à beira-mar, tirei azes da manga num oásis,
jantei com só-o-Diabo-sabe-quem, de casaca, comendo trufas.
Do alto de uma geleira, olhei meio mundo, a terra
quase inteira. Quase me afoguei duas vezes,
por três vezes deixei que facas esburacassem minha pança.
Abandonei o país em que nasci e que me viu crescer.
Os que me esqueceram dariam a população de uma cidade inteira.
Percorri as estepes que viram os Hunos berrando do alto de suas selas,
usei roupas que, hoje, por toda parte, estão voltando à moda,
plantei centeio, cobri de pixe o telheiro de estábulos e chiqueiros,
nesta vida só não bebi água seca.
Deixei que o terceiro olho das sentinelas se esgueirasse para dentro
de meus sonhos úmidos e sinistros. Comi o pão do exílio, mofado, encaroçado.
Concedi a meus pulmões todos os sons, exceto o urro;
preferi o gemido. Hoje, estou fazendo quarenta anos.
Que posso dizer da vida? Que é longa e detesta a transparência.
Ovos quebrados me entristecem; mas omeletes me enjoam.
E, no entanto, até que me enfiem argila pela goela abaixo,
tudo o que posso fazer sair dela é gratidão.

Joseph Brodsky (tradução de Lauro Machado Coelho)