Aurora Borealis

Sunday, March 25, 2007

A DUPLA SOLIDÃO


Quando Deus vê Adão no paraíso, observando apenas os animais ao seu redor, percebe que existe algo errado e concluí: “Não é bom que ele esteja só”. “Não é bom” significa, de alguma forma, que não é conveniente – que não se pode fazer muita coisa quando o homem descobre que é apenas um corpo rodeado por outros corpos com quem não tem nenhuma semelhança. Os filósofos existencialistas afirmam que o homem se descobre como homem quando percebe a sua “fundamental solidão” – uma expressão bem pomposa para uma situação desgraçada. Deus acredita no contrário – e Ele reforça isso com a mais simples das expressões: “Não é bom”. Para Deus, o homem só se descobre como homem quando se encontra com o seu oposto, com o Outro – com a mulher que nasce da sua costela depois de um torpor no corpo muito semelhante ao de um parto. A partir daí, eles – o primeiro homem e a primeira mulher, Adão e Eva – serão “uma só carne”. Deus cria então aquilo que será a maior das batalhas do ser humano, maior do que qualquer guerra mundial: o casamento.

Atualmente, o casamento é visto como uma mera instituição ou como um meio para duas pessoas fazerem safadezas entre quatro paredes sem a bisbilhotice dos outros. Mas é óbvio que vai além disso. Chamar o casamento de “batalha” não é um exagero. É simplesmente dar o nome correto a uma das escolhas mais importantes na vida de uma pessoa – senão a mais importante. O poeta inglês W.H. Auden dizia o seguinte:

“Que ninguém diga Eu Amo sem estar
certo do quanto é necessário para alimentar
uma partícula arruinada, um fio de cabelo
que joga uma sombra no universo inteiro”.

Esta partícula arruinada é o próprio mistério do casamento, feito de alegrias e de tristezas, épocas de saúde e de doença, feito sobretudo daquilo que somente os santos são capazes: o de perseverar na adversidade, lutando contra os obstáculos, sempre com a noção de que é uma partícula arruinada, uma partícula que existe, resiste e dá forma a tudo o que virá pela frente.

Pois, como diria Von Balthazar, uma das inteligências mais penetrantes do século passado: “O que há de mais forte e que configura com mais radicalidade uma forma de vida senão o casamento, que verdadeiramente engloba e supera todos os desejos de evasão do indivíduo, esta relação indissolúvel que evita inexoravelmente as tendências desagregadoras da existência e obriga aos vacilantes a transcender-se a si mesmos, através da forma, no amor autêntico? Na promessa matrimonial, os esposos não confiam sua fidelidade a si mesmos, nas areias movediças de sua liberdade, senão à forma que, escolhida, os escolhe. Por ela, decidem-se em um ato de toda a sua pessoa, que se entrega não somente ao seu amado, à lei biológica da fecundidade e à da família, como também a uma forma com quem se identifica no mais íntimo de sua personalidade, de modo que partindo das suas raízes biológicas penetre todos os estratos do ser e o leva a alcançar as alturas da Graça e do Espírito Santo”.

Sim, estas palavras são difíceis e fortes – mas desde quando o casamento é algo para os fracos de espírito? Auden também avisava: “Estamos sempre no erro/ lidando como trapalhões/ nossas vidas estúpidas”. Não se pode perder a noção de que o casamento é uma batalha – mas uma batalha divertidíssima. Haverá choro e ranger de dentes em alguns momentos, assim como haverá risos misturados com lágrimas – e, muitas vezes, são por essas lágrimas que surgem o mais sincero dos risos. Os esposos são dois atores que se preparam para entrar em uma comédia de erros – e ninguém sabe qual será o texto exato que indica a entrada e a saída. Apenas terão de confiar que o fim, seja lá qual for, não terminará com a seguinte observação: “Não é bom”. Porque, apesar da batalha, apesar dos obstáculos e da “dupla solidão” que eles devem empreender, chegará a hora que escutarão a mesma voz oculta que surge em seus ouvidos neste exato momento e que diz somente uma única palavra, a palavra que carregarão em seus corações até o fim de suas vidas: “Alegrem-se”. Ou, como diria um famoso quarteto de Liverpool, a única coisa que se deve saber nesses instantes em que toda uma vida se define é que “no fim, o amor que você toma é igual ao amor que você cria”.